domingo, 31 de janeiro de 2016


...

É decerto uma lástima dar início ao fim.
É lastimável fechar portas e cessar luzes.
Luz que poderia reluzir tanto!
Talvez não...
Como se saberá agora?
O caminho findou.
Caminho longo demais. Curto demais.
Não importa.
Olho para trás e o vejo tão insignificante.


Iria aos confins por você.
Se não houvesse como, criaria meios.
E estaria lá.
Hoje, não mais.
Verdadeira negativa deixo.
Sem peso, transtorno ou reflexão.
Chega de reflexões...
Reflexão demais para conclusões de menos.
Tão só desejos...
Então, basta!


Agora apenas recordações de cada sonho.
Foram todos eles magníficos demais.
Talvez de fato em demasia.
Não sei...
Como se saberá agora?
O caminho findou.
A semente não vingou.
Não houve quem a regasse.
Ou houve, mas não o fez?
Do que importa afinal?
Como saberíamos agora?
Se inevitavelmente o caminho chegou ao fim...


Escritora Tereza Reche



sexta-feira, 29 de janeiro de 2016




AOS QUE FINGEM AOS POETAS




Devemos agradecer aos que nos mentem...

Aos que nos dizem apenas por dizer.

Agradecer àqueles que nos tiram a razão do viver.

Não há como revoltar-se.

Não há motivo sequer coerente.

É através do sangue que faz verter daquele que creu...

Que amou de fato, e solitário faleceu.

Que através da morte lenta e impiedosa,

Que faz nascer a poesia, poemas e estrofes bem traduzidas.

São eles, os anjos de inspiração sequer sem saber.

Não os culpemos, nós os poetas.

Oposto a isso, somos gratos pelo afiado punhal que nos corta.

Somos amáveis e benevolentes, em amor incondicional.

Somos, pois, compreensivos e admiramos a eles.

Pois são inocentes da conduta, não compreendem a voz que ouvimos.

Cegos às visões que possuímos e, sobretudo, causadores das palavras que nos fazem nascer.






Escritora Tereza Reche


segunda-feira, 25 de janeiro de 2016




Se algum escritor escreve sem dor, não é escritor...





NORMOPATIA DO AMAR



Existem duas formas de amantes; os que amam e os que são amados. Não seria possível ser ambos, quem nisso crê decerto se engana facilmente ou, busca mentir a si mesmo. 
O limiar entre um e outro é o mais eternal abismo que se possa haver entre ambos onde, o que ama não percebe por amar e o que é amado por sê-lo. 
Essa discrepância se faz necessária para que haja o ciclo penoso da busca incessante do amar e ser amado. 
Não haveria movimento se o abismo fosse ultrapassado, não haveria gosto pelas conquistas ou, ainda, não haveria o que buscar. Seria unicamente e nada mais, tédio o Amor.

Mas ele não é.

Ele só mareia o estômago do lado de cá e silencia do lado de lá... Isso é fato e, sobretudo, normopático na medida certa. Sendo assim, concluo; Inferno é para os de cá, Éden para os de lá.



sexta-feira, 22 de janeiro de 2016




MULTIVERSOS



Em cada passo que dei, ainda que desviando e esbarrando neles, ainda assim me confundi pensando que éramos todos do mesmo mundo.
A cada tragada de névoa julgada, que dizem nos matar aos poucos. Dessa eu rio satisfeita... 
Não é o meu ou o cigarro dele que fazem mal... Não é o álcool ou a inconstância que nos deterioram.

Mais dano causou em mim e em nós seus julgamentos.
Mais dor causam e continuam a macerar, os olhares superiores de mundos inferiores. 
Ouço tanta coisa intercalada no vento, tanta espada desnecessária que procuram uns aos outros.
Risos, todos estes, vagabundos!
Entre o tumulto de falas em concordância a fim de cercar-nos, ora ouço as tímidas que nos defendem, entretanto, são discretas demais...
Nós deste mundo aqui, apenas observamos... Como o animal silvestre indefeso e aprisionado em meio a cidade tumultuada.
Tumulto invasivo...
Procuramos a concha, onde se adormece e se respira o silêncio que tanto almejamos. 
Por que é tão complexo para aqueles do outro mundo nos interpretar?


A quem devemos pedir que nos explique?
Ou de fato quem nos deve explicação são eles?
Caminhar anos numa estrada estrangeira, adormecer tristemente no leito, temendo aquele que nos acompanha.
Comer sem fome, pois esta se esvai pelo desalento. 
Despertar e num instante prever o longo esforço que há de percorrer em horas de um dia. 
Elevar os olhos descrentes à única visão que lhe parece familiar...
Deter todo e qualquer som que não venha de lá.
Ser julgado pelos deste mundo, simplesmente por ser si mesmo, e ainda assim, desejar ser. 

Escritora Tereza Reche


quarta-feira, 20 de janeiro de 2016


ARMADILHAS DE UM  TEMPO 
As Ovelhas de Laguna 







Fragmento I



[...] – Então, é uma calvinista e ex-noviça carmelita é isso?



- Sim, eu e minha amiga Catalina.



- Sei algo sobre essa Catalina Laguna, falam muito sobre uma que se perdeu do grupo de vocês, foi morta pelo santo ofício não foi?

- Ela não foi morta! Ela ainda está viva! - exclamou Amália revoltada com a afirmação do jovem, que imediatamente tentou consertar a frase.

- Tudo bem, eu acho que não quis dizer isso, quis dizer, que foi capturada, mas que provavelmente ainda será julgada, não sei. O que acham que pode ter havido com ela?

- Não sabemos, é por isso que Esteban está assim. 

- Morrendo de amor. – disse Pierre de forma séria, Amália olhou nele e perguntou sorrindo desta vez. 

– Você estudando para ser médico acredita nisso?

- Já vi muitos morrerem de amor, por isso eu acredito.

-Então seria capaz de morrer de amor Pierre? - perguntou curiosa cessando os passos debaixo de uma macieira. 

– Aquele que é incapaz desse feito, ou é perfeitamente correspondido, ou jamais amou verdadeiramente ao não ser correspondido. 

- Que linda definição para o amor. – Recostou-se a árvore, e fitando agora mais calmamente e menos tímida o companheiro de caminhada, sorriu admirando a filosofia do jovem. Pierre vendo a imagem tão bela dela, respondeu com o olhar, sem palavras ou movimento algum. Apenas naquele olhar, puderam se entender perfeitamente.

- Vou assistir a um culto calvinista qualquer dia, meus vizinhos eram anabatistas, mas desde ano passado se converteram ao calvinismo após assistir aos cultos de vocês. Devem saber persuadir muito bem.

- Não fale assim, não é persuasão, é a verdade sendo exposta, apenas isto Dr. Pierre.

- Posso fazer esta visita, acompanhado de uma bela senhorita?

- Sempre vou aos cultos, nos vemos lá. 

Respondeu Amália ajeitando seu avental longo, posicionando-se para voltar à mansão, mas o jovem tentou detê-la para estarem ao menos mais alguns instantes próximos.

- Espere Amália! Vamos caminhar mais, sequer conversamos ainda, quero saber do que você gosta como foi sua vida no convento...

- Cada dia uma pergunta doutor Pierre. Assim teremos mais razão de passeios. 

Sorriu ela com brilho nos olhos, em uma inocência fraternal, levou o rapaz a derreter-se em encantos, meneando a cabeça como quem desacreditasse em tanta doçura e ingenuidade numa só mulher.

- Sim, está certa. Então estamos acordados, no próximo culto estarei com John Storder e sua esposa, eles são os vizinhos que lhe falei, John anda extremamente enfermo, mas nunca perde os cultos quando está um pouco melhor de saúde, e espero poder vê-la por lá.

- Certamente me verá. Vamos agora?

- Vamos Amália.

O caminho curto de volta precisava ser estendido, os passos eram ainda mais lentos para que o momento fosse ainda mais longo. E naquela essência de romance imaturo e cheio de expectativas, ambos flutuavam visivelmente, a comover aos que os viam trocar tantos ingênuos olhares. Muitas das vezes tinham que ser despertados por alguém, pois pareciam sair deste mundo juntos, quase num mesmo instante e sonho. Entretanto, bem distante desse sonho e flocos de algodão, estava Catalina em seu cárcere naquela tarde de janeiro. Encolhida com seus ferimentos agora bem cicatrizados por três semanas de descanso das sessões de tortura surpreendeu-se com o velho som dos passos malditos do alcaide em sua direção, um tremor estranho subiu pela sua espinha como que automaticamente, e seus olhos dilatavam numa reação traumatizante de relacionar aquela cena ao que haveria de passar pelos próximos dias. 

Catalina estava naquele cárcere mais de um ano, e a exato um já não usava sua língua para dialogar, seu silêncio era a única arma para resistir às torturas e tentar deixar a realidade, vivendo assim em um mundo irreal onde se podiam buscar forças para ressuscitar a cada óbito diário naquele lugar. 



– Hora de pagar pelo pecado cometido herege. 

Riu o carrasco abrindo a porta pesada e imunda para buscar o corpo franzino e seminu da pobre reformista. Catalina meneava negando com o olhar piedoso derramando seu mundo de lágrimas pelos olhos azuis já não tão reluzentes como antes, olhar este, ignorado como de costume pelo carrasco que a trazia pelo braço direito amarrado ao esquerdo com uma espessa corda que cortava seu pulso magro e delicado. Desta vez o corpo frágil teve que se submeter à dura e dolorosa experiência do pêndulo, o carrasco amarrou os braços de Catalina para trás, enquanto o semblante dela desfalecia em desespero e dor, por ter inúmeras vezes assistido esta cena infernal. Nenhuma palavra, apenas o olhar fixo, sem um piscar sequer, observando cada movimento, onde o carrasco preparava seus momentos de terror.

A corda foi amarrada a uma roldana e um eixo, então foi quando em certa altura, que o torturador subitamente puxou a corda soltando violentamente uma porção desta, o que fez com que luxasse de forma profunda os ombros tão magros de Catalina. Os gritos lhe vieram da alma naquele instante, mas desapareceu na segunda vez que foi baixada a corda, onde deslocado seus braços a levou a desmaiar definitivamente. O carrasco olhou para seu companheiro e meneou a cabeça negativamente, inconformado com a fraqueza da moça.

-Ela não suporta nada, mande-a pra cela antes que morra, a execução será em breve, tem que estar viva!



O carrasco retirou-a então e nos braços levou-a feito uma criança de colo até seu cárcere, ali Catalina agonizou longos dias, foi examinada por médicos do Santo Ofício, como era de costume ser feito, até que seus ombros se curassem. Somente após total cicatrização, se renovariam as sessões de tortura.

O grande hematoma em ambos os braços, iam aos poucos ao inicio de fevereiro desaparecendo, quando uma tarde chuvosa o mesmo som dos passos do carrasco foram novamente ouvidos. O mesmo pavor corria ligeiramente pela espinha, o mesmo tremor, e o mesmo pânico lhe tomaram o corpo e a alma.

Então soltou de dentro de suas entranhas um grito de loucura, misturado a gestos enlouquecidos, se empurrando pelas costas contra a parede como que tentando ser absorvida por ela. Seu choro era quase infantil, não ouvia mais nada, pouco enxergava, pois as lágrimas e o embaçado da escuridão de um ano não lhe permitia ver. Então sentiu a mão calma que a tocou, era um toque diferente, que cessou suas lágrimas. Teve que abrir, ou ao menos tentar abrir os olhos... Então ela o fez.



O olhar celeste daquela tão bela moça, que hoje estava semelhante a um rato de esgoto, escondida naquele buraco aguardando pela morte mais terrível escolhida pelo tribunal do Santo Ofício por ela ter assumido o protestantismo, seria executada pelo “estiramento”, método onde a vítima era despedaçada através de correntes estiradas gradativamente, quais estavam presas ao corpo. 

Naquele instante abriu-se para ver um rosto conhecido, havia muito tempo não via. Mas sim, conhecido, era a face tão meiga quanto de uma amiga, Ângela estava ali, segurando sua mão gélida e trêmula. Catalina ficou fitando aquele sorriso encharcando-se de lágrimas de emoção, Ângela chorava mais que a vítima chorou aquele tempo todo no cárcere do Santo Ofício.

- Minha menina! Meu Deus oque fizeram com você!? O que fizeram com você Catalina!? [...]


Fragmento II 



[...] Na longa estrada de partida, a carruagem que levava Catalina, era escoltada por cavalos Percheron e seguranças do clero. Ela se encontrava adormecida, até que a brisa fria despertou seu sono leve e pode ver a paisagem, finalmente uma luz que há mais de um ano não via!
Levou as mãos aos olhos, estavam ainda sensíveis demais, voltou o rosto ao ombro de Ângela que a acalentou como uma mãe e então voltou a adormecer. Dias seriam necessários para se chegar ao destino, mas nada disso seria levado em conta para um espírito que estava finalmente, sentindo o sabor da liberdade e da vida. 

Ela estava viva!

Em Estrasburgo, Pierre acabara por se acostumar a visitar Esteban e Antoinet, com esses dois pretextos não faltava oportunidades de ao menos ver a doce imagem jovem de Amália, perambulando pela imensa mansão dos Fletcher. 

Sempre vinha sozinho, entretanto, aquela manhã de março trazia a companhia de um homem simpático, seu vizinho John Storder*. casado com a gentil Idelette de Bure*honrosa mulher que juntamente com o esposo zelava pela família.



Agora, após deixarem o anabatismo, acompanhavam juntos com seus dois filhos o ideal calvinista fervorosamente. 

- Olá Bartolomeu! Como estão meus pacientes? 

Cumprimentou Pierre sorridente a Bartolomeu que deixando seus afazeres na horta, respondeu prontamente: 

- Bom dia doutor Pierre! 

- Quero que conheça meu amigo e vizinho John, ele é assíduo dos cultos de João Calvino, o próprio Calvino e ele são amigos há mais de anos. 

- Sim, o chamo de Calvin, ele já é amigo da família. 

- Que bom, fico feliz em conhecer mais um amigo e irmão na fé. Entrem, ainda há café da manhã, querem se alimentar? 

- Estamos famintos! - Sorriu Pierre cativando o sorriso de John também. 

- Então venha, vou chamar António, Giovani e Esteban para descer e nos acompanhar. 

Na cozinha, estavam bem alinhados em seus lugares, Fletcher estava presente e Esteban quase perdido em meio aos amigos mantinha-se taciturno em seu semblante apático. 

– Como se sente nestes últimos dias Esteban? Vem se alimentando conforme lhe prescrevi? 

- Sim, venho Pierre. – respondeu secamente e com esforço, sempre sendo intercalado por tosses. 

- Não gosto dessa tosse, tem sido constante? Tem ocorrido durante as noites? 

- Não sei, creio que não. Eu estou bem Pierre, estou muito bem, mas e você John... De que mesmo, desculpe-me? 

- John Storder. 

- Sim, John Storder! Mora há quanto tempo aqui? 

- Moro há dois anos Esteban, com minha esposa Idelette e meus dois filhos. 

- Que bom, uma bela família então. 

-Sim, uma família linda! Éramos anabatistas até assistirmos uma ministração de Calvin. 

-Calvin? 

- João Calvino, desculpe, é que o chamamos de Calvin, é costume somos muito chegados. 

- Sim, claro... 

- Então, como ia dizendo, nos apaixonamos pelos ideais calvinistas, então deixamos o anabatismo e passamos a frequentar a igreja de Calvino. 

- Entendo. Calvino me falou de uma família que ele prezava muito, eram vocês com certeza. – sorriu Esteban vendo em John um novo amigo e irmão na fé. 

John Storder era um homem franzino, pálido e, sobretudo doentio, sua esposa não diferente tinha uma beleza um tanto rara, não chamaria a atenção por onde passasse, mas tratava-se de uma esposa prendada e extremamente fiel. Ambos recorriam repetidas vezes ao jovem doutor Pierre, quais muitas delas perdia noites de sono tentando acalentar o desespero ora do esposo pela esposa, ora da esposa pelo esposo. Asma por parte de John, e fraqueza persistente por parte da senhora Idelette. 

Mas, ainda assim, a paz reinava naquela família e pensou Esteban, mesmo que fosse a asma, a fraqueza e a impaciência das péssimas noites dormidas, que fossem essas, ao lado de sua amada. Mas isso tudo foi processado em seu silencioso pensamento, como de costume sorriu superficialmente e voltou a usar sua face de espera eterna. 

A paz daquele diálogo foi interrompida pelo som de violentas patas cavalgando em direção à mansão. Esteban não se moveu apenas os olhos seguiram até a porta para atenção ao som, os outros se levantaram imediatamente assustados, isso remetia aos inquisidores sempre! Mas em Estrasburgo?... 

– Ei amigos, acalmem-se, não há o que temer, não é o que estão pensando. - disse Esteban na mesma tranquilidade de sempre mantendo-se pacífico e sentado, os outros foram se assentando novamente. Foi quando se ouviu bater na porta, Angelina surgiu da porta de seu quarto descendo inocentemente a escadaria sendo repreendida por Giovani com um gesto de mão.

- Espere! Eu atendo!

- Não, eu sou o dono da casa. Então eu atendo. – disse Fletcher levantando-se bravamente, ouviam os cavalos, pareciam ser muitos. Era um evento atípico, por isso achara estranho. 

  Fletcher abriu a porta lentamente e enquanto a luz do dia entrava também aos poucos, ele pode ver a cena mais temerosa daqueles dias. Era a cavalaria do clero romano, trazia três oficiais, um inquisidor e mais alguns soldados que os escoltavam pela viajem! Fletcher estremeceu em sua estrutura, aquela região estava livre da inquisição e Calvino tinha liberdade principalmente em Estrasburgo, não compreendia o que estaria acontecendo. 

- Venho em nome do cardeal Afonso de Portugal! Estamos a serviço do Tribunal do Santo Ofício!

Fletcher permaneceu imóvel. Esteban esforçadamente surgia com sua valentia paternal de sempre tomando a frente, mesmo muito mais franzino que das últimas vezes. 

– A Inquisição Romana não tem liberdade aqui! 

- Viemos em paz. 

- A que vieram afinal? Senão para nos submeter ao Santo Ofício?

- Estamos aqui a procura de uma prova de que um desgarrado de seu grupo chamado Brício, qual diz abjurar o protestantismo e sua crença herética Esteban Delmar, diz existir e estar na posse de seu primo António! 

 Esteban franziu o cenho estranhando tantas discordâncias... Brício abjurando sua fé? Prova? Nas mãos de António? 
 Tudo tão tumultuado na mente do adoentado líder Delmar que em uma repentina vertigem recostou-se a parede, levando as mãos a região do tronco como que tentando superar uma forte dor, disse voltando-se para o mensageiro que permanecia montado ao cavalo. 

- Deixe António fora disso, ele não sabe de nada! Deve estar havendo um engano! 

António, por sua vez, em silêncio e como sempre amedrontado, escondeu-se atrás de uma longa cortina pesada de veludo carmim desaparecendo através desta... Tremendo feito um cão sem dono, ali permaneceu a respirar minimamente a fim de não ser notado por eles. Apenas ouvia cada diálogo, atentamente enquanto sua respiração ofegante movimentava a cortina em frente ao seu rosto que suava de forma aterrorizada. 

- Brício disse ao tribunal, quando se entregou solicitando voltar ao clero, que havia escrito uma carta de arrependimento e que a endereçara a seu primo António! Se esta carta não existir, ele será levado como réu e depois de ser devidamente castigado por suas heresias diabólicas contra a Santa Igreja em solo sagrado, será executado de forma pública! Portanto é bom que essa carta exista herege! 

Rispidamente o enviado respondeu apontando-lhe a espada.

Das palavras brutalmente ditadas a Esteban que de olhos estalados ouvia calado ao lado de Fletcher, a respiração de António cessou definitivamente. O ar parecia somente ser aspirado e quase levá-lo a perder os sentidos. Bastou cinco segundos para que aquelas palavras fossem processadas em sua mente e ele compreendesse do que se tratava! Subitamente num desespero saiu de trás daquelas cortinas com dificuldade lançando-se fora e subindo como um louco a escadaria quase a cair por duas vezes os degraus. 

Bartolomeu de pé ao lado de Amália e os outros todos atônitos, apenas viram a cena sem nada compreenderem. Em seu quarto, António confuso, trêmulo e repetindo freneticamente a palavra “papiro”, tentava encontrar o papiro lacrado qual Brício havia lhe entregado certa ocasião. 

Ainda em frente à porta, Esteban continuava a não compreender absolutamente nada. 

- Está dizendo que Brício, quer voltar ao clero romano?! 

- Ele está mantido encarcerado por enquanto, é acusado até que apareça essa carta.  Segundo ele, esta fora assinada pelo próprio cardeal Afonso de Portugal. 

Esteban riu por um instante, e depois de um instante cessando o riso, disse caindo em si: 

- Então quer dizer que ele deseja voltar a ser dominicano? 

- Não. Não é isso que ele deseja. 

- Como não? Não entendo. O que então ele deseja? 

  Antes que a resposta fosse concluída o desvario de António descendo a quase perfurar as escadas, trazia o papiro enrolado na mão erguido ao alto como uma bandeira, um troféu, ou qualquer outra espécie de salvação e glória! 

-Aqui! Aqui! Sou eu! António! Aqui a carta! Brício não mentiu! 

Todos ficaram pasmados... Ainda mais Esteban, que não hesitou em tirá-la da mão de António e abri-la rapidamente desenrolando o papiro. Estava escrito em latim, Esteban sendo copista sabia latim fluentemente e enquanto a lia, mais seu semblante se desfalecia. 

- O que diz a carta Esteban? - perguntou Fletcher em tom baixo receoso ao notar o semblante angustiado do amigo. Esteban, ora fechava os olhos como que tentando inconscientemente apagar aquelas escritas de sua mente. Respirava fundo aliviando a poluição mental e refrigerando tanto massacre literal. Levantou o olhar para o mensageiro , que o fitava seriamente aguardando seu parecer. 

- E então líder herege, o que sua ovelha desgarrada diz? 

- Diga Esteban! O que Brício diz nessa carta? 

- Esteban, por favor... 

Insistiam todos ao lado do líder que, envolvido por uma dor solitária inspirou longamente. Todos mantiveram um silêncio ansioso, então com a voz trêmula e espaçada Esteban iniciou a leitura. 

– “Venho através desta declaração pública, abjurar da heresia que cometi contra a santa igreja católica romana... 

– respirou profundamente buscando forças para continuar -

... Venho também, declarar que deixo essa seita herética idealizada e liderada pelo intelectual Esteban Delmar, homem qual eu pensava ser... 

- novamente precisou de uma pausa, trancou fortemente os olhos, recusavam ler aquela frase novamente - 

... Homem qual eu pensava ser íntegro e santificado, porém mostrou-se carnal, falsificado e severamente tomado pela corrupção e luxúria, traindo ...” 

- Chega! Pare com isso! Meu irmão não escreveu isso! Desesperou-se Amália ao ouvir tantas acusações contra Esteban, todavia, Bartolomeu despertou-a segurando-a pelos ombros para que se acalmasse. 

- Cale-se Amália! É a letra de Brício! Sendo essa a carta de abjuração, ele está livre da execução do Tribunal do Santo Ofício, fique calma, pelo amor de Deus! 

Amália, já em prantos e confusa com tudo aquilo, foi acalentada por Pierre que a levou para dentro. Antes que Esteban terminasse o mensageiro desceu do cavalo. Então dirigiu-se lentamente até ele. 

– Está bem, já compreendemos que se trata mesmo da carta qual ele comentara, dê-me a carta. 

Esteban, com o semblante disperso e mais ainda perdido em uma nebulosa de pesadelos a olhos abertos, lembrou-se apenas de perguntar mais uma vez pela resposta que não lhe foi dada. 

- Espere! Não me respondeu, disse que ele não deseja voltar a ser dominicano? 

- Não. Não é essa a colocação de Brício, visto que abjurou honrosamente a seita anabatista e calvinista e se propõe a nos ajudar ativamente. – dizia o mensageiro enquanto se movimentava com seu cavalo, já fazendo tumulto com os outros para partirem. 

- Não entendo. Ele ajudará em que? 

- Será um oficial inquisidor em Portugal, estão instalando inquisidores por lá e Brício será enviado a Coimbra onde deverá ser instalado em breve um Tribunal naquela cidade, servindo ao cardeal e irmão do rei Dom João III, Dom Henrique, o inquisidor-mor do reino... Seu antigo seguidor será um homem importante líder huguenote... E então, seu maior inimigo! Se eu fosse você Delmar, seguiria os passos do seu aluno...



  Sorrindo ironicamente o mensageiro deixou a mansão dos Fletcher. O grupo de reformistas estagnados com aquele evento matinal inesperado, calado permanecia. Esteban fitava os cavalos que pareciam cavalgar agora em marcha lenta, pareciam na verdade nunca terminarem de partir. Sua mente confundiu-se em um entrelaçar de dor, passado, medo e incredulidade. Brício, seu fiel amigo dissera aquelas acusações acerca dele, que era carnal e tomado de luxúria, corrupto, desonesto. Mas onde estariam todas estas características escondidas a seus olhos? Seu velho amigo Brício, sua amada Catalina, sua vida e seu ideal, perdidos... Tudo, tudo definitivamente estava perdido. 

  A visão da cavalaria numa nuvem esbranquiçada esvaia-se de forma calma, quase inconsciente e isso veio a ocorrer, sua consciência se foi, num súbito momento Esteban a perdeu, primeiro a visão, depois a ciência do ser e do estar, levando-o a desmoronar definitivamente num amontoado sobre a grama. 

- Meu Deus Esteban!


Gritou Angelina, vendo-o cair de repente, todos o acudiram e o levaram para os seus aposentos.  

Pierre o examinava, não havia febre, mas parecia que não mais haveria de acordar. Porém, um evento tenebroso ocorreu minuto depois, rodeado pelos amigos, exceto Antoinet que permanecia enclausurada em seu quarto, o líder abriu os olhos dilatados. O jovem médico se aproximou rapidamente dele e analisando seu olhar perguntou enquanto sentia sua pulsação:

 - Como está se sentindo Esteban? 

E o rapaz, deixando um fio de lágrima cair, respondeu sem um piscar de olhos sequer: 

- Não vejo mais nada! Só escuridão... Meus olhos estão cegos! 

  Houve silêncio. Nada foi dito e num instante de estagnação grupal, Pierre se distanciou lentamente espantado com aquela afirmação tão calma de Esteban. Amália em choque levou a mão à boca e ainda assim nada conseguia pronunciar. António sentou-se calmamente no chão e o restante permaneceu imóvel, como que aquela frase curta servisse de congelamento mental para todos. 

Pierre então movimentava algumas coisas a sua frente e realmente, não havia resposta visual nenhuma. O líder reformista apenas aguardava algum som, pois nada mais podia ser visto diante de seus olhos.  O jovem médico baixou a fronte em desânimo e olhando os seguidores do moribundo rapaz, sem visão além do que já lhe faltava, disse entristecido: 

- A notícia da carta, ou a somatória de tudo, deve ter culminado nessa resposta fisiológica. Em um dano físico, advindo da emoção que sentiu, só tenho um parecer... Eu sinto muito. 

Permaneceram calados, Esteban permaneceu da mesma maneira, sem palavras e agora, sem visão alguma, a escuridão de sua alma agora seria também do mundo que não mais poderia ver. 

Antoinet em seu quarto aos berros camuflados pelo travesseiro, não se conformava com a notícia que recebera de Angelina acerca da carta e da decisão de Brício. Não aceitava o que ouvia pelo lado de fora acerca da afirmação de Esteban, e bem sabia que tudo aquilo provinha dela. Estava definitivamente sozinha e agora teria, além de que cuidar da criança que trazia no ventre, um inimigo invencível, seu esposo Brício!

A causadora de uma torrencial maldição consecutiva, abismos após abismos de desgraça e dor, todas por um só interesse; o seu interesse. 

Ao mesmo tempo, distantes dali portas estavam abertas; portas do cárcere de Catalina... A liberdade finalmente chegava a ela de forma inusitada, mas a alma de seu companheiro ainda não tinha conhecimento desse evento desfalecendo minuto a minuto, dia após dia, sem descanso e sem paz. [...]




Fim do Capítulo II




Escritora Tereza Reche





John Storder* & Idelette de Bure*


João Calvino era dedicado às Escrituras e à igreja. Ele enfatizava a soberania de Deus e o viver cristão em suas pregações e escritos, e era cercado por muitos fiéis amigos cristãos. Não surpreendentemente, ele também teve um casamento muito feliz. No entanto, encontrar uma companheira adequada provou ser uma tarefa assustadora para Calvino. Muitos de seus bem-intencionados amigos e familiares tentaram arranjar casamentos para ele, e todas as vezes Calvino foi desapontado. Finalmente, ele quase se submeteu ao celibato.


Quando o amigo de Calvino, Guilherme Farel, escreveu-lhe para contar sobre mais uma possível esposa, Calvino respondeu: “Eu não pertenço a esse tolo grupo de amantes, que estão dispostos a cobrir até mesmo as falhas de uma mulher com beijos, tão logo tenham caído por sua aparência externa. A única beleza que me encanta é que ela seja virtuosa, obediente ao invés de arrogante, econômica, e paciente, e que eu possa contar que ela cuide da minha saúde”. Quando Calvino finalmente se casou com Idelette van Buren, ele encontrou a única coisa necessária pela qual esteve procurando: um coração sincero e obediente, piedoso para com Deus. Para Calvino e Idelette, tal piedade era fundamental para enfrentar as dificuldades e os desafios da vida de casados. Embora pouco se saiba da vida de Calvino e Idelette no lar, ao que tudo indica, ela era serena e piedosa apesar de suas muitas tragédias e dificuldades. Ao examinarmos a vida de Idelette com Calvino, vamos nos focar em várias lições que podemos aprender com o seu exemplo piedoso. Pois, em Idelette, vemos o que pode ser chamado de modelo para o casamento cristão. É o padrão de vida santa que Colossenses 3:12 diz incluir “misericórdia, bondade, humildade, mansidão, longanimidade; suportando uns aos outros, e perdoando uns aos outros”. Estes ingredientes, que permearam o casamento de João e Idelette, ainda nos oferecem hoje uma variedade de maneiras úteis de enriquecer e abençoar nosso casamento.


Os deveres de Calvino como pastor e reformador eram demais para sua saúde. Ele contraiu tantas doenças por causa de sua pesada carga, que seus amigos o persuadiram de que ele precisava de uma companheira para aliviar alguns afazeres da vida doméstica. Calvino tinha vários alunos vivendo com ele, alguns poucos aposentados (pensionistas), e uma ranzinza governanta com um filho. O bom amigo de Calvino, Guilherme Farel, tentou duas vezes encontrar para ele uma esposa que correspondesse ao seu ideal bíblico. Por fim, Martin Bucer sugeriu a viúva Idelette van Buren (possivelmente de Buren, na província holandesa de Gelderland) como candidata adequada. A esta altura, Calvino estava pronto a permanecer solteiro para o resto de sua vida. Depois de considerar a sugestão de Bucer, no entanto, Calvino percebeu que Idelette, de fato, aparentava ter o caráter que ele procurava. 


Idelette era uma jovem viúva com dois filhos pequenos. Seu falecido marido, Jean Stordeur, um marceneiro de Liège (uma “daquelas cidades da Holanda, nas quais o despertamento havia sido mais extraordinário”, D’Aubigne escreve), contraiu a peste em 1540, um pouco mais do que um ano depois da chegada de Calvino à cidade, e morreu dentro de alguns dias. Os Stordeurs viviam em Estrasburgo, que era um refúgio para os cristãos que fugiam da perseguição romana. Eles eram anabatistas, os quais foram rejeitados pelos católicos romanos, pelos luteranos, e igualmente pelos reformadores. É possível que Idelette fosse filha de um famoso anabatista, Lambert van Buren, que em 1533 foi condenado por heresia, teve suas propriedades confiscadas, e foi banido de Liege. 


Além de não acreditarem no batismo infantil, os anabatistas defendiam vários ensinamentos que os diferenciavam dos da Fé Reformada. Por exemplo, os anabatistas acreditavam que não deveriam participar no governo ou lutar em guerras. Eles também acreditavam que nunca deveriam fazer um juramento, mesmo em um tribunal. Em alguns casos, os anabatistas tentavam separar-se do mundo, estabelecendo suas próprias comunidades. Embora Jean Stordeur e Idelette não pertencessem à ala radical dos anabatistas, em geral, os anabatistas eram radicais em comparação com outras expressões de fé da Reforma. Alguns deles enfatizavam a vida espiritual em detrimento da Escritura e da sã doutrina. Outros tomavam medidas radicais para promover suas crenças, até ao ponto da violência. Curiosamente, Calvino ajudou a suprimir o anabatismo, através de seus escritos e apoiando o aprisionamento e banimento de alguns de seus membros mais radicais.


Quando Calvino e Farel foram expulsos de Genebra, em 1538, Calvino começou a pregar na igreja francesa de Estrasburgo, onde Jean e Idelette participaram dos cultos. Quão desejosos eles deveriam estar de ouvir Calvino, que já era bem conhecido por escrever as Institutas da Religião Cristã. Convencidos da verdade Reformada, Jean e Idelette rapidamente deixaram os anabatistas e juntaram-se à igreja de Calvino. Lá, eles adquiriram um amor pela Escritura e pelo lugar central que ela detinha no culto. Eles também desfrutaram de pregação clara, de cuidado pastoral, e da calorosa amizade de seu líder. Nesse tempo, Idelette já exibia um forte compromisso com Cristo e um espírito ensinável. Em vez de se ressentir da severa política de Calvino contra os anabatistas, ela leu as Institutas e aprendeu a apreciar a devoção de Calvino à Palavra de Deus. Ela e seu marido foram a muitas exposições diárias da Bíblia por Calvino. Eles também foram muito hospitaleiros para com Calvino. Calvino desfrutava da amizade deles e considerava-os, como eles se chamavam, seus discípulos. Ele admirava “a simplicidade e a santidade da vida deles”. A morte de Jean Stordeur foi um golpe profundo para Idelette. Ela não apenas perdeu seu querido marido, com quem ela estava unida de tantas formas, mas ela também não tinha como sustentar a si e aos seus filhos como viúva.


Logo após a morte de Stordeur, Bucer perguntou a Calvino: “E a amável Idelette?” Embora Calvino tenha anteriormente pensado em Idelette como uma querida irmã em Cristo, ele, agora, começou a reconsiderar aquela relação. Enquanto trabalhava duro para expandir as Institutas de seis capítulos para dezessete, ele deve ter periodicamente ouvido o eco: Por que não Idelette? Afinal, a mulher era piedosa, gentil e inteligente. Embora ela fosse alguns anos mais velha do que Calvino, ela era surpreendentemente jovem e atraente. Machiel van den Berg observou que “o extrovertido Farel expressou seu espanto por ela ser uma mulher tão bonita” Em última análise, porém, era o fruto evidente de Colossenses 3:12 na vida Idelette que impressionava Calvino, que perseguia a piedade em todos os aspectos de sua própria vida. Calvino havia apreciado a hospitalidade de Idelette tanto antes quanto depois de seu primeiro marido falecer. Essas visitas aumentaram quando Calvino começou formalmente a cortejar Idelette. Poucos meses depois, em 17 de agosto de 1540, Calvino casou-se com Idelette, levando-a e a seus filhos (um menino e uma menina) para sua casa. Amigos vieram de perto e de longe para participar do casamento de Calvino. 



CARÁTER DE IDELETTE

Idelette era calma, modesta, animada, e ainda sóbria. Theodore Beza, o primeiro biógrafo confiável de Calvino, a chamou de a melhor das mulheres — “uma mulher séria de espírito de bom caráter”. Embora fosse delicada e sofresse com uma saúde frágil, Idelette dedicou toda a sua força para educar seus filhos. A fidelidade de Idelette em meio às dificuldades que enfrentou revelavam sua mansidão e humildade. Essa reação, no entanto, não significava que ela fosse fraca ou medrosa. Seguir a Cristo no caminho do sofrimento exige grande força e coragem, e Idelette se submetia pacientemente às diversas providências de Deus.

Para obter espaço para Idelette e seus filhos em sua pequena casa em Estrasburgo, Calvino teve que abrir mão de dois de seus locatários. Abrir mão dessas fontes de renda foi um significativo sacrifício para Calvino, considerando o seu magro salário, mas ele parece ter feito isso alegremente. Apenas algumas semanas depois de seu casamento, ele escreveu a Farel sobre quão satisfeito estava com sua nova esposa. Como Van den Berg escreve, Calvino “claramente percebeu no casamento uma especial experiência de alegria”. Van den Berg continua, dizendo que “o casamento deles foi mais do que um simples acordo racional; ele se tornou um vínculo verdadeiro e sólido de amor e lealdade. A calma e paciente Idelette foi uma amiga excepcionalmente adequada no casamento”.

Pouco depois de seu casamento com Idelette, Calvino foi a Regensburg para assistir a um debate teológico. Enquanto ele estava fora, a praga atingiu Estrasburgo. Um dos melhores amigos de Calvino, Claude Feray, morreu pela praga. Calvino ficou preocupado com Idelette, que havia se refugiado fora da cidade. Ele escreveu: “Dia e noite a minha esposa está em meus pensamentos, agora que ela está privada do meu conselho e deve agir sem o seu marido”. Por fim, Calvino não pôde se preocupar mais; ele logo deixou o debate para voltar à Idelette.

Idelette e Calvino ficaram em Estrasburgo por menos de um ano até que Calvino foi chamado de volta à Genebra para continuar o seu grande trabalho como Reformador. A pressão desta decisão pesava fortemente sobre ele. As cartas deste período de Calvino indicam que ele estava muito feliz em Estrasburgo e não queria retornar a Genebra. Ele escreveu a Farel: “Eu temo atirar-me neste redemoinho que acho tão perigoso”. Apesar de não termos nenhum relato sobre os pensamentos e sentimentos de Idelette naquela época, o casal decidiu se mudar para Genebra, em resposta à vontade de Deus. A filha de Idelette, Judith, os acompanhou, enquanto seu filho permaneceu em Estrasburgo com parentes.

Ainda que o Conselho da cidade de Genebra tenha proporcionado uma bela habitação para Idelette e Calvino no topo da Rua de Chanoines — ela tinha um pequeno jardim e uma magnífica vista do Lago Léman e das montanhas de Jura de um lado, e dos Alpes do outro lado —, Calvino só recebia um salário de cerca de US$ 200 por ano, doze medidas de milho, e dois barris de vinho. Embora os recursos à sua disposição fossem muito modestos, Idelette alegremente abriu sua casa para numerosos refugiados e frequentemente estendeu sua hospitalidade aos amigos de Calvino, como Farel, Beza, e Viret, todos os quais respeitavam-na grandemente.

Idelette era uma maravilhosa esposa e companheira para o mais proeminente pastor de Genebra. Quando o trabalho de Calvino como pastor, escritor e funcionário público ameaçou sua saúde, Idelette provou ser uma confidente, conselheira, cujas opiniões eram muito necessárias. Ela cuidava do espírito abatido e da saúde frágil de Calvino, e visitava os doentes no lugar dele. Ela também abria mão das suas vontades para assegurar a Calvino que ela o respeitava por permanecer fiel a Deus e às Escrituras, não importando o custo. Idelette estava disposta a compartilhar com ele qualquer fardo que ele carregasse e assegurava-lhe que ele nunca deveria ser tentado a descansar de seus deveres por causa do alívio e conforto que ela lhe dava. Ela era profundamente comprometida com ministério de Calvino como pregador e professor, bem como com a sua organização da forma de governo igreja-estado, fundada nos princípios das Escrituras.

Após a morte de Idelette em 1549, Calvino escreveu a um amigo: “Eu tenho sido despojado da melhor companheira da minha vida, de alguém que, se lhe fosse solicitado, não só teria participado voluntariamente da minha indigência [ou pobreza], mas até mesmo da minha morte. Durante sua vida ela foi a fiel auxiliadora do meu ministério. Dela, eu nunca experimentei a menor resistência”.

Talvez o ponto crucial do casamento de Calvino e Idelette é que a sabedoria de Deus brilha mais em pobres vasos de barro. Uma mulher com quem Calvino havia considerado se casar antes de casar-se com Idelette era muito rica. Embora ela pudesse ter oferecido um dote substancial, ela não falava o francês nativo de Calvino. Você pode imaginar tentar conduzir uma mudança mundial, cumprindo a tarefa de moldar a igreja fornecendo orientação espiritual para o povo de Deus, durante um dos tempos mais desafiadores da história, com um cônjuge que não fala a sua língua? Quando buscamos primeiramente a vontade de Deus para nossas vidas, obtemos bênçãos, diz Colossenses 3:24. Calvino e Idelette não procuraram riquezas, status, ou ganho mundano para si mesmos. Eles são um belo exemplo de crentes que se uniram como cônjuges para fazer a obra de Deus de uma forma magnífica.


PROVAÇÕES E PERSEVERANÇA

Logo após seu retorno à Genebra, Idelette prematuramente deu à luz um menino, o qual chamaram Jacques. O bebê morreu um mês depois, em agosto de 1542. “O Senhor certamente infligiu uma ferida severa e amarga através da morte de nosso filhinho”, Calvino escreveu a Viret. “Mas Ele próprio é um Pai e sabe o que é necessário para Seus filhos”. Na mesma carta, Calvin observou que Idelette estava muito aflita para escrever, embora ela estivesse se submetendo a Deus em sua aflição. Ela também quase havia perdido a vida durante o nascimento do bebê. Calvino escreveu para Viret que ela havia estado em “extremo perigo”.
Idelette se recuperou, mas teve tristeza após tristeza. Dois anos depois, ela deu à luz uma menina, em 30 de maio. Calvino escreveu para Farel, “Meus filhinha labuta sob uma febre contínua”, e dias depois ela também morreu.²¹ Algum tempo mais tarte, um terceiro filho nasceu morto. Em meio aos deveres e pressões esmagadores de Calvino, a dor pela perda de seus filhos foi a mais profunda, especialmente para Idelette. No entanto, ela e Calvino perseveraram, submetendo-se ao Senhor, e colocando sua confiança nEle.

Então, insulto foi lançado sobre a tristeza quando alguns católicos romanos escreveram que, visto que a esterilidade no casamento era sinal de reprovação e julgamento, a condição de filhos de Calvino e Idelette deveria ser juízo de Deus contra Calvino. Um escritor, Baudouin, ainda escreveu: “Ele se casou com Idelette, com quem não teve filhos embora ela estivesse no auge da vida, para que o nome deste homem infame não pudesse ser propagado”.
Calvin falou, mais tarde, que a profunda aflição por sua falta de filhos foi superada apenas pela meditação na Palavra de Deus e pela oração. Ele escreveu privadamente a seu amigo Pierre Viret, que ele também encontrava conforto em saber que possuía “miríades de filhos por todo o mundo cristão.”

Mais sofrimento se seguiu. Por volta desta época, a praga atingiu pessoas por toda Genebra. Ela havia se espalhado por toda a Europa, deslocando centenas de milhares de pessoas de suas cidades e casas. De uma carta (Abril de 1541) a seu pai, descobrimos que Calvino enviou Idelette e seus filhos a Estrasburgo por segurança. A separação de Idelette foi insuportável. Embora Calvino estivesse profundamente preocupado com a segurança de sua esposa, ele também foi firme em sua confiança em Cristo. Devemos aprender com isso que nada na terra mantinha Idelette e Calvino tão fortemente unidos como seu vínculo de amor ancorado em Cristo.

Em 1545, centenas de valdenses perseguidos refugiaram-se em Genebra. Idelette estava ao lado de Calvino durante esse tempo, trabalhando duro para fornecer alojamento e emprego para eles. Eles eram tão incansáveis em sua devoção aos imigrantes, que alguns genebrinos os acusaram de serem mais úteis para os estrangeiros do que para os amigos.

João e Idelette Calvino viveram tempos felizes, assim como muitas tristezas. Em nossos dias, quando tantos psicólogos e terapeutas prometem ajuda para os casamentos, é tentador negar a Escritura como sendo insuficiente para nos dizer como a vida de casado deve ser. No entanto, Calvino e Idelette oferecem um notável exemplo de como um casamento baseado na Escritura e centrado em Cristo pode funcionar no meio de circunstâncias difíceis. Perder filhos e amigos, ser arrancando de uma comunidade para outra, enfrentar um cronograma extremamente exigente, e se ajustar a um novo casamento são apenas algumas das provações que enfrentaram este casal. No entanto, eles foram abençoados com um casamento e uma vida familiar pacíficos e felizes.


Calvino e Idelette atribuíam o sucesso de seu casamento à graça de Deus. Deus era a sua fonte de perdão, compaixão, misericórdia, ternura, paciência e contentamento em todas as suas dificuldades. Pela graça de Deus, esses dons e princípios não mudam com o tempo, mas permanecem estáveis em Cristo para os fiéis que buscam casamentos que glorificam a Deus. Quando vivemos por estes princípios em união com Cristo, nossos casamentos podem conhecer uma alegria que excede em muito a felicidade do mundo.


MORTE DE IDELETTE

A saúde de Idelette piorou constantemente durante seus nove anos com Calvino. Ela sofreu de febre durante os últimos três anos de sua vida. Em março de 1549, ela ficou de cama. Ao mesmo tempo, Calvino estava sendo perseguido por poderosos inimigos em Genebra, não sabendo que eles seriam derrotados em seis anos. Naquele momento, parecia que tudo em sua vida estava desabando sobre ele. A cidade parecia o estar rejeitando, suas reformas estavam falhando, e sua preciosa esposa estava morrendo. No entanto, em meio a tudo isso, Deus sustentou Seu servo.

A última preocupação terrena de Idelette foi com seus filhos. Calvino prometeu tratá-los como seus, ao que ela respondeu: “Eu já os encomendei ao Senhor, mas sei bem que você não abandonaria aqueles a quem eu tenho confiado ao Senhor.”

“Esta grandeza de alma”, Calvino escreveu mais tarde, “vai me influenciar mais poderosamente do que uma centena de louvores o faria”.

No fim de sua vida terrena, Idelette orou: “Ó Deus de Abraão e de todos os nossos pais, os fiéis, em todas as gerações, têm confiado em Ti, e nenhum deles jamais foi confundido. Eu também esperarei”. Ela partiu para a glória no dia 05 de abril de 1549. Calvino estava ao seu lado, falando com ela sobre a felicidade que haviam desfrutado por nove anos e sobre a alegria que ela teria em breve ao “trocar uma morada terrena pela casa de seu Pai do alto.”

As cartas de Calvino pouco depois da morte de Idelette expressavam sua tristeza por ter perdido sua querida companheira, que ele afirmou ser uma rara mulher rara, sem igual. Mesmo em seu leito de morte, “ela nunca foi incômoda para mim”, ele escreveu. Isso fez com que a tristeza de Calvino fosse ainda mais profunda . Este provação nos mostra que submeter-nos à vontade de Deus não nos isenta das dificuldades.


Calvino tinha apenas quarenta anos quando Idelette morreu. Como Ezequias, quinze anos ainda seriam acrescentados à sua vida, mas eles seriam anos sem sua preciosa esposa. Ele escreveu a seus amigos que ele mal podia continuar com seu trabalho, mas ele se estimulava a isso. Seus inimigos acusaram Calvino de ser insensível por trabalhar tão diligentemente, mas Calvino era tudo, menos sem coração. Ele escreveu a um amigo: “Eu faço o que posso afim de que eu não seja totalmente consumido pela tristeza. Eu fui privado da melhor companheira da minha vida; ela era a fiel ajudante do meu ministério…. Meus amigos fazem de tudo para aliviar, em algum grau, a dor de minha alma…. Que o Senhor Jesus te confirme pelo Seu Espírito, e eu também sob esta grande aflição, a qual certamente teria me esmagado, não tivesse Ele, cujo ofício é levantar o prostrado, fortalecer os fracos, e vivificar o desfalecido, estendido a mim ajuda do céu”.





CONCLUSÃO




Nossa cultura tem uma visão cínica do casamento e da promiscuidade. Um recente relatório sobre o aumento da taxa de divórcio mostra que ele é maior entre pessoas de 25 a 35 anos. Embora parte desse aumento do divórcio possa ser devido à economia, um fator que contribui é o dia do casamento em si. Tanto tempo e dinheiro são gastos com o planejamento para o dia do casamento, que pouco tempo é gasto na preparação para o casamento! Uma sociedade que enfatiza somente o dia do casamento só pode produzir cinismo a respeito do casamento.


A visão bíblica do casamento é bem diferente. A Escritura nos ensina que o pecado desfigurou profundamente as intenções de Deus para o casamento, mas Cristo amorosamente o restaurou. A verdadeira alegria no casamento é resultado de quando o marido se esforça para amar a sua esposa como Cristo ama a Igreja e quando a mulher se esforça para respeitar seu marido da maneira como a igreja respeita a Jesus Cristo. João e Idelette Calvino conheceram esta alegria. Uma das coisas mais surpreendentes sobre a relação deles é que eles exalavam alegria, mesmo nas circunstâncias mais traumáticas. Eles sabiam o que significava se regozijar em Deus no meio da perseguição. Eles encontraram alegria no temor de Deus enquanto se esforçavam para glorificá-Lo. Eles encontraram alegria em sua salvação, alegria em sua fidelidade um ao outro, alegria no amor e companheirismo um do outro, e alegria no serviço ao próximo. Em suma, Idelette foi uma companheira, uma verdadeira alegria para seu marido,

Fonte: Esse artigo foi publicado originalmente no PRTS journal (2010). Traduzido por Arielle Pedrosa e publicado em português pelo site Mulheres Piedosas:<http://www.mulherespiedosas.com.br>.